domingo, maio 9

:: As mães

Quando a vovó morreu, foi como se todo mundo tivesse morrido um pouquinho também, dentro de cada coração. Ainda hoje leio os cartões que ela fazia questão de escrever a cada data especial.

Vovó guardava chocolate Surpresa na gaveta para descobrirmos os bichos raspando a superfície da barra, delicadamente, por cima do papel-alumínio. Vovó sempre comprava cachos de banana para nos receber, sempre soube que banana era a nossa fruta predelita. Vovó também preparava banhos de banheira quentinhos com óleos e frescurinhas e, no café da manhã, preparava café com leite e fazia barquinhos de pão francês com manteiga. Vovó cantava pra gente antes de dormir, contava histórias, fazia um carinho de leve na nuca, que deixava a gente inteirinha arrepiada. Vovó fazia purê de batata sem igual e gostava da mesa cheia. Cheia de comida e cheia de familiares.

E então vovó morreu e todos nós morremos um pouquinho por dentro. Na hora de dividir as coisas, o que gerou mais confusão entre os cinco filhos foi o jogo de louças, com os pratos floridos, com um delicado friso dourado na borda. E então, no final das contas, o jogo foi separado entre três, dos cinco filhos.

Hoje mamãe nos recebeu com a mesa posta. É o dia dela, mas foi como se fosse o nosso. Depois pensei melhor e entendi. Era um dia dela com a mãe dela. Foi o primeiro dia em que ela tirou os quatro pratos do armário que fica lá no quarto dos fundos. Tirou ainda a toalha bordada. Preparou uma das mesas mais lindas que já. Talvez a mais linda.

Talhares do jogo de prata, para dias especiais. Guardanapos de pano. Dois minivasinhos que ela trouxe de uma feira de antiguidade de Londres, com florzinhas brancas. Velinhas também. Taças que ganhou no casamento, há tantos anos. Uma mesa assim, para mulheres. Delicada.

Ontem mamãe foi ao Santa Luzia comprar um hodoque de quase dois quilos. Pela primeira vez ela enfrentou a receita que a vovó mais gostava de fazer. O hadoque com batatas coradas, em creme. E então foi como um ritual, de descongelar o peixe, deixá-lo descansando em leite, retirar o leite, mergulhá-lo em um creme aveludado, o tempo exato de forno. Depois serviu tudo à mesa em travessas que eram da vovó, bem como ela fazia.

Estava tudo lindo e perfumado, mas ainda restava um medo. O medo da primeira garfada. Mas passou. Ficamos até em silêncio para sentir aqueles sabores que nos levavam para tão perto da vovó. Era como se ela estivesse com a gente, num almoço de mulheres. E como se, cada vez mais, pudéssemos nos encontrar nas mulheres que somos. E que queremos ser.

Um comentário:

Bianca Zanatta disse...

Daqui dá até pra sentir o perfume do hadoque no creme, das batatas, das flores nos vasinhos. Um beijinho na sua mãe, pela beleza-filhota de parasemprear as receitas da mãe dela, e outro nocê, por escrever gostoso a ponto da gente sentir que tem um lugarzinho nessa mesa de mulheres lindas.