quinta-feira, maio 31
:: As coisas de verdade
Ele é gay, tem 46 anos, espanhol, mora em Valencia. É dono de um restaurante de frutos do mar, que serve uma paella valenciana que ele diz ser incrivel… É ator e, as vezes, diretor. Ja dirigiu, por exemplo, uma peca com cinco atrizes que discutiam questoes femininas que me pareceram interessantes. Um dia, em uma dessas preparacoes de ator, teve a chance de trabalhar com um grande diretor da Espanha que propos um exercicio que me instigou. No fundo, me senti um pouco dentro daquilo, enquanto ele contava. Voce tinha acesso ao dialogo mas nao podia le-lo. Voce tinha de atuar, inventar qualquer dialeto e se fazer compreender. Com a gente foi mais ou menos assim. Ele fala espanhol, eu nao falo espanhol. Eu nao falo tanto ingles e ele menos ainda. Eu falo portugues e ele nao fala portugues. Foi assim que a gente se conheceu. E, de repente, apareceu uma amizade. E tudo isso veio tao das visceras. Porque tivemos que nos fazer compreender com gestos, com olhares, com linguas diferentes. E nos entendemos tao bem. Ele tem um namorado ha 16 anos e eu ha 4. Ele fala sobre relacoes e meus olhos chegam a encher. Mas é lindo ver ele me ouvindo, apesar de ter anos mais de experiencia. Ele simplesmente esta aberto a me ouvir. E assim foi. Ele com seu ingles terrivel, do tipo que traduz literalmente as coisas do espanhol pro ingles e diz sem parar I like “me” very (com o “v” com som de “b”) very much isso e aquilo. Porque ele é assim. Uma pessoa apaixonada pela vida. Ele anda e se interessa pelas coisas, ele para e bserva o que tem ao redor, ele presta atencao nos detalhes e ve beleza em cada um deles. Ele tem olhos azuis e uma boca estranha. Tem uma pancinha da idade e cabelo grisalho. Ele ri alto e me faz rir alto tambem. E eu adoro rir alto. Nesses dias que passamos juntos, eu ri tanto que fiquei leve. Senti minha alma tranquila, meu humor estavel, minhas bochechas relaxadas, meus olhos fechando e abrindo lentamente a cada grande risada. Ele gosta de fazer compras. Outro dia fomos compras tennis novos pra ele e eu cuidei como uma crianca. Achei os modelos prediletos e o numero dele certinho. Ele gostou. Ele gosta de arte, gosta dos museus, mas ve tudo meio rapido. Nao gosta de muita gente ao mesmo tempo e acha NY estressante. Mas ele ama NY. Aqui ele vai a uma peca por noite, quando nao tem peca, ele me ve. Outro dia viu Kevin Spacey bem do lado dele no palco e disse: voce tem de ver. E eu devo ir qualquer dia desses. Porque agora ele se foi. E eu quero preencher meu coracao. Fiz um novo amigo. Mas nao é so. É alguem que quero manter na minha vida, e mais: perto de mim. E agora eu choro, porque tenho medo de me perder. E agora ele se foi e nao posso mais brincar de perguntar as coisas na rua para me encontrar. Porque nao tem graca longe dele.
:: A nao-rotina
NY é assim. Voce anda um pouco e entra na Baby Gap para fucar as roupinhas de bebe – sua grande amiga esta gravida e voce quase nunca resiste as roupinhas de creoncas daqui. E entao voce anda mais um pouco e olha aquele visual do Lincoln Center e pensa que quer voltar ali mais vezes. Nem que seja so para olhar mesmo. E entao voce chega na Julliard School of Music. Anda um pouquinho perdida ali dentro, acha a pequena sala para se sentar… Poucos minutos depois, um incrivel garoto polones que ganhou duas bolsas de estudo para vir para NY estudar na Julliard (!!!) entra lentamente no palco, olha timido para a plateia com o cabelo escondendo o rosto e senta ao piano. Respira e comeca a tocar classicos. Toca Chopin, toca Beethoven e no bis (que na verdade nao foi bis) toca Bach, que é o meu predileto. Ele simplesmente acaba com o meu predileto. E entao eu levanto, aplaudo bem alto para chamar os deuses (eu aprendi que os aplausos chamam os deuses) ate sentir uma leve queimacao na palma das maos. Saio da sala. Ja é noite e esta escuro. Mas nao tem problema porque aqui eu ando a qualquer hora e me sinto segura. Chego em casa em poucos minutos, tomo um banho demorado, deito e penso que o cara tinha apenas 24 anos, relembro mais um dia que passou. Simples assim.
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