sexta-feira, abril 23

:: Causos da Espanha

Ia escrever algo do tipo aqui. Mas acabou de saiu na Folha Online.


Se eu tivesse topado encarar aquela cerveja com tapas para assistir ao clássico do futebol num bar (Real Madrid e Barcelona), na primeira noite em Madri, não teria almoçado no parque no dia seguinte, nem visto a linda escultura do Calder no jardim do Reina Sofía (enquanto turistas ficavam amontoados à frente da Guernica de Picasso), nem observado bem de perto as várias cores de tulipas do Jardim Botânico. Muito menos teria tido tempo de fuçar tão calmamente a feira de livros velhos ao ar livre, que trazia raridades e livros de receitas já amarelados. Por isso não me arrependo.


Luiza Fecarotta/Folha Imagem

Obra de Alexander Calder, no jardim do museu Reina Sofía


E, depois de tantos dias de convivência intensa com a gastronomia local e com os colegas de viagem, fiquei com a certeza de que fiz o melhor em caminhar sozinha naquela manhã. Foi um dia lindo de sol e frio leve.

Mas o auge em Madri foi mesmo o Mercado de San Miguel, ali pertinho da Plaza Mayor, inteiro envidraçado, mostrando para os passantes as cores de suas frutas e a suculência escandalosa de seus frutos do mar frescos. Ali se come tapas de todas as espécies. Experimentei, por exemplo, uma torrada coberta com guacamole, com um ovo de gema firme por fora e molinha por dentro, e, para coroar, uma anchova que veio dar graça e sabor ao petisco.

Às nove da noite, mas ainda claro, chegamos ao Rocamador, um hotel-monastério no meio do nada, num silêncio absoluto. Meus olhos quase fecharam ao longo jantar. Nunca havia comido uma paleta de cordeiro daquele tamanho, que escapava do prato --e estava tão tenra que fiz questão de não deixar pedra sobre pedra. Um exagero de gordo. Mas o melhor não foi o menu, confesso. O que me manteve acordada foram os causos de Carlos Tristancho, 54. Um personagem. Fazia tempo que não conhecia um cara como esses na gastronomia. Com histórias tão envolventes para contar.

Luiza Fecarotta/Folha Imagem

Tapa de guacamole, ovo e anchova, servido Mercado de San Miguel


Rei dos porcos

Tristancho fala pelos cotovelos. Se apresenta como o "rei dos porcos". Verdade. Tem uma propriedade ali nas redondezas, na região de Extremadura, onde cria porcos pretos selvagens, que vivem livres em campos extensos (leia matéria na Ilustrada de hoje). Vende os cortes diretamente à patota dos chefs estreladíssimos da Espanha --Ferran Adrià, Andoni, Joan Roca. "Quando o alimento passa por muitas mãos, é muito maltratado", diz.

Mas ele não é só um criador de porcos. Tristancho é casado com uma ex-modelo, tem cinco filhos. "Na minha casa não tem televisão, gosto do ambiente familiar." Antes dos porcos, dos filhos e da mulher, vivia do cinema. Já atuou em mais de 70 filmes, entre eles, longas de Almodóvar. "Hoje não sinto falta, mas penso voltar para o cinema, como diretor." Também já produziu um programa de música na TV, no qual recebeu personalidades como Madonna, Prince...

Todos os dias, acorda antes do amanhecer e se põe a escrever. Agora está dedicado a uma novela. "Uma novela gastronômica. É um banquete e tem uma cozinheira que toca os alimentos e mostra sua essência. Quero que seja um tratado, não só uma novela." E Tristancho, que faz um culto à vida, como ele mesmo diz, também conhece filmes do Glauber Rocha, canções de Maria Bethânia e Caetano Veloso e performances de dança do Grupo Corpo.

Não dá detalhes, mas conta "an passant" que ficou em coma por três anos. "Só depois comecei a recuperar os aromas da infância e voltei a me sentir vivo." E hoje dedica sua vida aos porcos, aos filhos, à mulher e à comida. "O prazer tem de estar implícito na comida."



Queijos espanhóis

Ali no térreo do Rocamador, tomado por uma atmosfera bucólica, fizemos também uma degustação de queijos espanhóis guiada pelo professor Ramón Cava, da Universidade de Extremadura. Ao todo, provamos dez exemplares, divididos por tipo de queijo (vaca, cabra e ovelha), do mais suave para o mais intenso. "No país, temos cem tipos de queijos principais. No Norte, predominam queijos produzidos a partir de leite de vaca, no Mediterrâneo, leite de cabra e, no centro, leite de ovelha", diz o especialista.

O auge da degustação foi o Torta del Casar, de forma cilíndrica, pasta branca, lisa e cremosa, que passa por um processo de maturação mínimo de 60 dias, em câmara com baixa temperatura e alto teor de umidade.


Luiza Fecarotta/Folha Imagem

Queijo espanhol Torta del Casar, que passa por um processo de maturação mínimo de 60 dias

Produzido a partir do leite cru de ovelha, em Cáceres (na região de Extremadura), o produto tem sabor intenso, ligeiramente ácido e com notas de amargor. Este último vem de uma erva chamada cardo, que é colocada em contato com o leite cru no processo de separação do soro, para que fique livre de impurezas. Para conservá-lo, basta congelá-lo ou banhá-lo em azeite de oliva.

Extras

Degustamos ainda um menu dividido em dez etapas, no restaurante Atrio, duas estrelas no guia "Michelin", em Cáceres, outro de 19 etapas do chef Paco Roncero, no La Terraza del Casino, em Madri, impecável e inventivo --meninos de terno, meninas de vestido, salto e batom vermelho.

Na rota, também apareceram as cidades romanas. Perdidos no labirinto das antigas construções de Cácares, por exemplo, paramos em um convento, onde freiras vendem doces típicos, ricos em gema de ovo, através de uma grade, de forma que não podemos vê-las. Em uma mordida, se entende. Dos deuses.

SERVIÇO

Hotel Rocamador
Ctra. Nacional Badajoz-Huelva km 41.100, Almendral - Badajoz
tel. +34 924 4890 00

Atrio Restaurante
Av. de España, 30, Cáceres
tel. +34 927 242 928

La Terraza del Casino
Alcalá, 15, Madri
tel. +34 915 321 275

Mercado de San Miguel
Plaza de San Miguel, s/nº, Madri

A jornalista LUIZA FECAROTTA viajou a convite da Embaixada da Espanha em São Paulo

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