:: A chave amarela
É um almoço para poucas pessoas. Ele vai deixar São Paulo e um pouco de cada um de nós. E tem aquele Drummond de que amo desde sempre, e logo me veio à cabeça, "O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas". Não hei de me afastar dele. E, sabe, mesmo não estando muito inspirada hoje para lhe escrever longamente, tem uma história que sou capaz de recuperar. A história que nós mesmos batizamos de "chave amarela". Há uns tantos anos, quando assisti "My Blueberry Nights", passei a entender o que diabos eu tinha com as chaves. Essa adoração, como se eu fosse abrir alguma coisa secreta, secreta e encontrar um mundo mais seguro e feliz, de repente. Do filme, pouca coisa me despertou. Tem Jude Law, tem a trilha sonora, linda, linda (exceto a Joss Stone, que me cansa deveras) e tem o lance das chaves. Bem no comecinho, no bar (ou no restaurante, não me lembro mais), ele mostra aquele vidro cheio delas, as esquecidas, as deixadas. Me fogem os detalhes. E foi ali, naquele momento, que me fez sentido o chaveiro da vaca Geralda (um chaveiro que carreguei pra cá e pra lá por anos, anos) carregado de chaves que não fazem mais sentido. Eu era a única neta com as chaves da casa de vovô e vovó. E vovô me fez um jogo colorido --e eu nunca havia visto chaves coloridas-- para que ficasse claro, só num decorar de cores, qual era a do primeiro portão, a da porta dos fundos e a da porta principal. E eu andava com aquele molho de chaves no maior orgulho de ser a única, a única neta, de 13, a ter as chaves da casa de vovô e vovó. Mas depois vovó morreu. E passado mais um tempo, um ano, dois, três, vovô morreu, sereno. A casa ficou à venda, depois de muito demorar, pois foi preciso nos desfazer de montes de coisas --vovô era colecionador obstinado, eram livros, discos, obras de arte, quadros. Uma beleza de casa. E fizemos aquela coisa triste, triste de abrir a casa a desconhecidos, depois de pinçarmos, em família, tudo o que iríamos manter entre os Santos Vieira. Mesmo passado tudo isso de tristeza e vazio e certa solidão --eram únicos, únicos, vovó fazia barquinhos de pão francês para nadar no café com leite (e foi, até hoje, a única pessoa capaz de fazer meu café com leite à perfeição), vovô passava horas a nos falar sobre livros e discos--, mantive as chaves daquelas mesmas portas, que sabe-se lá onde estão agora, no meu chaveiro da vaca Geralda. E aí que esse moço, sobre o qual falei ali no início, que vai deixar São Paulo e um pouco de todos nós, um dia me fez a cópia da chave da casa dele, amarela, pois ia viajar e me deixou de babá das gatas. Ele sabe, são gatas amáveis (e eu amo gatos). Ele sabe. E então, quando voltou de viagem, combinamos de manter a chave comigo. A chave daquela porta, daquele pequeno e aconchegante e adorável apartamento de janelas largas e badulaques nas paredes. E assim foi. Meu chaveiro, do gato do British Museum, pois aposentei a vaca Geralda, já caduca, passou a ter a chave amarela que dava passagem para aquele cantinho aprazível. Passou mais um tempo. Um longo tempo, aliás. E, certo dia, meu telefone tocou. Era ele, numa sexta à noite, angustiado, preso para fora de casa. Havia perdido sua chave. Eu estava na casinha a esperar uma visita muito especial. Já tinha tratado de espalhar vasinhos de flor aqui e ali, tocava um disco da Nina de que amo, e quem apareceu foi ele, esbaforido. Ainda não conhecia a casinha e, de certa forma, fiquei meio assim de recebê-lo tão depressa, por conta de uma emergência. Mas entreguei a chave a ele, apresentei o Moacir, e ele se foi, pronto, prontinho para abrir a porta de sua casa. Demorou uma semana e pouco, acho, mas me devolveu a chave amarela. Agora está de partida. Fará esse pequeno almoço em sua casa, num convite que pedia discrição, "porque o apartamento é pequeno, as cadeiras são poucas e o fogão, de quatro bocas, é da marca Daco". Combinamos que a chave permanece no meu chaveiro do gato azul, e a gente pode brincar de abrir nossos segredos, mesmo com essa distância física que vai se colocar entre nós.
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