:: Os clássicos
Tenho pensado muito no vovô. Mais do que o normal. Não sei exatamente o que é. Uma vontade enorme, imensa, tremenda, talvez, de querer compartilhar da minha vida com ele. Aquela escuta atenta e orgulhosa, mas crítica. Aquela escuta que sempre o alimentou de maneira poética, até. E o interesse infindável pela vida. Pelas coisas da vida. E a admiração pelas artes, as obras que tanto amava catalogar. Os livros, os discos. De uma religiosidade e rigidez tamanha para organizar tudo aquilo. E eu, que não me desprendo dessa imagem nunca, nunca, esparramada naquele tapete peludo do escritório (lendo Fernando Pessoa naqueles livros de capa dura, de antigamente), que ficava no subsolo, bem em frente a um lindo jardim, de que cuidava como ninguém. Ali alimentava os pássaros até que ficassem saciados. E voltavam sempre. Cuidava daquelas flores todas e gostava muito, muito de levar os netos praquele cenário e fotografá-los. Depois que ficou mais velhinho fazia muito disso. Fotografava todos os encontros da família e depois mandava cópias para todos, num envelope com o nome de cada um escrito em caneta preta. Ele estava fazendo isso: compartilhando o amor. E sou grata por isso. Muito grata. Sou grata por ele ter me ensinado o amor pelos livros de literatura e de arte, por ter me colocado para ouvir os eruditos à exaustão, por ter me levado a todos os espetáculos de dança do Grupo Corpo e suportado meus ataques de riso quando criança. Hoje, nesta manhã em que perdi o sono antes mesmo de amanhecer, preparei um leite com café e vim ouvir Villa-Lobos. E fiquei aqui pensando, sabe, por que diabos eu não fui a neta a herdar os discos dele de Villa-Lobos. E me deu uma vontade enorme de sair, pular o dia de trabalho, e comprar sua obra completa e ouvir, ouvir. E ler e lembrar e tentar decorar o mapa do mundo para que ele tivesse orgulho de mim. Nunca, nunca se conformou de eu não saber a localização das coisas no mapa. E até hoje não sei - ainda que eu vá aprender, sim, por ele. Dia ou outro, vou aprender. Por enquanto, já aprendi a sequência dos oceanos, por exemplo. Pois, no mapa, eles foram a palavra "pai" - Pacífico, Atlântico, Índico. E então me deu uma vontade de contar sobre minhas andanças pelos sebos e minhas leituras dos livros de antigamente. Sobre os shows que tenho ido e sobre os jardins de apartamento que tenho feito aos fins de semana para me alegrar o decorrer dos dias. Contar que lembro do amor que ele guardou pela vovó até o fim - e que isso foi me ensinar, mais, sobre o amor. Sobre os buquês de rosas vermelhas com que ele fazia questão de presenteá-la - as levava, as flores, até a cama, para que ela pelo menos as olhasse, mesmo que não entendesse, com clareza, o que eram aquelas rosas vermelhas e o que representavam. Uma vontade de que ele lesse minhas reportagens e me ouvisse no rádio. Uma saudade, acho, de algo que era tão verdadeiro. E tão raro.
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Um comentário:
bonito, muito bonito.
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