quinta-feira, fevereiro 21

:: Da Ilustrada do sábado passado

Livros - Crítica/"Carta a D."

Paixão guia obra confessional e intensa de filósofo austríaco
Livro é uma declaração de amor de André Gorz a Dorine Keir; o casal se suicidou

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

O primeiro parágrafo de "Carta a D.", último e brevíssimo livro de André Gorz, já foi citado em toda parte, mas vale a pena repeti-lo aqui.
"Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável.
Já faz cinqüenta anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher."
Teórico da esquerda libertária desde os anos 60, pioneiro do pensamento ecológico na década de 70, o austríaco André Gorz conheceu a inglesa Dorine (Doreen) Keir em 1947, na Suíça. Viveram 60 anos juntos.
Em setembro do ano passado, Gorz e Dorine suicidaram-se com uma injeção letal. Ela sofria de uma rara doença degenerativa, a aracnoidite, causada pelo acúmulo de uma substância que lhe fora injetada para fazer contraste numa radiografia da coluna.
"Você vai eliminar esse produto em dez dias", disse o radiologista. Não foi assim: o líqüido, chamado lipiodol, subiu até o crânio, e também formou um cisto na região cervical. A compressão nas terminações nervosas causava dores insuportáveis.
Revoltados com o flagrante erro médico, Gorz e Dorine passaram a se interessar pela crítica ecológico-anarquista de Ivan Illitch (1926-2002). "Carta a D." descreve esse momento, cheio de convicção estóica e de ecos do existencialismo, filosofia de que Gorz tinha sido adepto nos anos 40.
"Você não tinha mais nada a esperar da medicina. Recusava-se a se acostumar com analgésicos e a depender deles. Decidiu então assumir o controle do seu corpo, da sua doença, da sua saúde; tomar o poder sobre sua vida em vez de deixar a tecnociência médica tomar o poder sobre a sua relação com o seu corpo e consigo mesma."
Menos do que uma descrição desse sofrimento, contudo, "Carta a D." é uma emocionante declaração de amor, a que não faltam vários toques de auto-recriminação.
Durante boa parte do livro, Gorz se dedica a entender por que razão, numa obra anterior ("Le Traître", o traidor, de 1958), fizera de Dorine um retrato a seu ver injusto e distorcido.
"Por que", pergunta o autor, "há seis linhas que falam de você como uma coitadinha "que não conhecia ninguém", que "não falava uma palavra de francês" depois de seis meses na Suíça? Eu sabia, no entanto, que você tinha seu grupo de amigos, ganhava melhor do que eu (...) Por que essas linhas detestáveis (...)? Nove páginas adiante (...) há cinco linhas de veneno".
Esses trechos de minuciosa auto-análise textual quebram um pouco o tom predominante do livro, mais ardente e desatado. Como se pode ver pelo parágrafo inicial, "Carta a D." possui uma extrema intensidade de sentimentos. A felicidade de André e Dorine ao se descobrirem enamorados parece tão aguda quanto o próprio sofrimento que viriam a conhecer anos depois. Essa mistura de felicidade e sofrimento tem um nome, o de paixão. Para sorte de ambos, foi-lhes mais incurável que qualquer doença.


CARTA A D. - HISTÓRIA DE UM AMOR
Autor: André Gorz
Tradução: Celso Azzan Jr.
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 29 (80 págs.)
Avaliação: ótimo

2 comentários:

gisela disse...

num abandona a gente, lu!

lufec disse...

ai, gi. eu vou voltar. prometo. tenho vários textinhos na gaveta, mas estou sem tempo. sempre sem tempo...