sábado, dezembro 18

:: Uma queda pelos clássicos

Sempre tive uma queda pelos clássicos. Não vou esquecer jamais dos fins de semana em que minha avó tocava Bach ao piano, com pedais e tudo, enquanto eu escrevia no diário, esparramada no chão da sala, tomando chá de cidreira. Quando entrei para a aula de piano impliquei com a professora que implicou com as minhas unhas roídas. Quando ela disse ou as unhas roídas ou o piano, fiquei com o piano. Mas, pouco depois, de unhas bonitinhas e tudo, ela disse que não ia me ensinar piano clássico. Só popular. E lá fui eu tocar "Água Branca" e cia. Uma chatice. Eu, que queria tocar as mais lindas canções clásscias e estudar incansavelmente, tive de tocar as populares de sempre. Parei o piano, depois. Desiludida. Até hoje sinto certa desilusão por isso.

Quando eu era uma pequena adolescente tive um amor platônico que também não vou esquecer. Íamos os melhores amigos todos na casa do avô de um dos amigos. Uma casa numa selva, em plena São Paulo, com uma escultura barroca num jardim de antigamente, com a grama verde, brilhante e incrivelmente aparada. O avô, pensa, nos deixava ficar na piscina e, lá pelas tantas, nos servia champanhe e caviar. Champanhe, uma tacinha, e caviar. Foi a primeira vez que provei um e outro.

Enquanto isso, o primo desse amigo não saía daquela sala espaçosa, que dava vista para o jardim, separados por uma enorme porta de vidro de correr. Ele não saía de lá de jeito nenhum. Ficava a tocar músicas clássicas naquele belíssimo piano de cauda. À exaustão. E eu, entretida. Desviava toda a atenção dos amigos juvenis da piscina, a brincar incansavelmente. Eu ficava ali de olho naquele primo mais velho, de nome bonito e mãos com dedos alongados.

Um pouco antes dessa fase, quando eu era bem menor, papai tomou o hábito de acordar a mim e a Li com música. Pianos e violinos clássicos, sem muitos sobressaltos, para que a gente não ficasse atordoada já pela manhã. Ele aumentava o som na sala, abria a porta do nosso quarto e abria a janela, sem falar nada. E a gente acordava.

Bem, e então, nos tempos de hoje, soube que aquela linda menina, de traços angelicais, olhos azuis, cabelos louros, dedos longos, nariz delicado, que conheço desde a infância, sem muita proximidade, foi convidada para ir para o Inhotim para uma missão e tanto. Ela, que dá sua vida ao piano, foi ao Inhotim virar as partituras para uma pianista clásscia que veio do Japão tocar aqui.

Fiquei com isso na cabeça.

E hoje, nessa manhã cinzenta, um pouco impregnada de tristeza, estava lendo Ian McEwan e ele começa a descrever uma de suas personagens. Florence morava num albergue severo, no qual as luzes de apagavam pontualmente às 23h, visitantes homens eram proibidos a qualquer hora. Ela praticava quatro horas de piano por dia e ia a concertos com as amigas.

Gostava, particularmente, dos concertos de câmara num lugar de "paredes desbotadas e descascadas", "o madeiramento envernizado" e o "tapete vermelho escuro do hall de entrada", o "auditório com a forma de um túnel dourado". Olha essa cena, que linda: "Ela reverenciava os velhos tipos, que levavam minutos para descer dos táxis, coxeando com suas bengalas até suas cadeiras, para escutar música num silêncio crítico e alerta, às vezes com a manta xadrez que traziam a cobrir-lhes os joelhos."

Passado um tempo, ela recebeu uma proposta de emprego de meio período nos bastidores. "Tinha de servir chá aos intérpretes na espaçosa sala verde e ficar de espreita na vigia para poder abrir a porta quando os artistas saíam do palco. Também podia virar as páginas para os pianistas em peças de câmara."

Fiquei com esse treco na cabeça. Vim então aqui passar os meus discos de Mozart, Bach, Beethoven e Vivaldi para o computador, depois para o iPod. E agora estou escrevendo enquanto ouço um pouco de tudo. Num cenário menos romântico, troquei o chá de cidreira por uma Coca zero gelada.

5 comentários:

Danielle Vieira disse...

Vc está lendo Na Praia???

lufec disse...

sim, sim! é lindo, né?

marcella franco disse...

(gostei muito desse e vou até comprar este livro)

lufec disse...

abora, esse livro já foi febre na equipe do guia - e no seu tempo! PAH

marcella franco disse...

(vou te confessar que quando eu tava no guia meu foco era OTO)