quarta-feira, maio 25

:: Uma relação antiga

Ela tinha um tato incrível para a música. E aprendeu, desde muito cedo, a acreditar em Deus. É assim até hoje. Tem a música, tem Deus, tem os afetos e os desafetos. Outro dia sentamos naquela sala mais reservada, de janelões de vidro, abertos para uma parte do jardim. Do outro lado da parede, um pouco atrás, eles estavam preparando a quatro mãos (e às vezes seis) uma massa recheada artesanal.

Depois de misturar o espinafre batidinho, esticaram a massa naquela máquina de macarrão, com uma manivela. Em seguida, rechearam pequenos quadradinhos com um queijo um pouco mais firme e mais amarelado que a mussarela de búfala.

Enquanto isso, estávamos na sala, de papo. Eu mexia na mão direita dela com delicadeza, dedo por dedo. Até que ela sentisse. Vez ou outra ela esticava o braço esquerdo até o copo d'água temperada que estava sobre a mesinha triangular que temos desde os tempos em que morávamos em família. Tomava um gole e apoiava de novo. E seguíamos conversando.

Contei, lá pelas tantas, que li a autobiografia da Nina Simone e o que ela realmente almejava era se tornar a primeira concertista negra de piano clássico. Por isso colocava-se a tocar uma, duas, três horas por dia. Tocava Bach. Aprendeu tudo de Bach. Assim como minha vozinha. Bach, pra Nina Simone, pra minha vozinha e pra mim é o predileto. Falamos então de pianistas clássicos, ela me contou um tanto sobre Beethoven, outro tanto sobre o próprio Bach. Chegou a falar alguma coisa de Chopin.

Acontece assim. Passamos horas conversando, se deixar. Mas sempre tem a coisa do tempo, me puxando pra cá e pra lá. Depois ficamos dias e dias sem nem nos falar. A mão direita dela ainda não está boa, mas tem melhorado, aos poucos. Faz pirraça da antiga fisioterapeuta. Ela dizia que minha bunda era durinha, acredita? E minha mão, nada de melhorar, disse dia desses.

E agora, que está com uma fisioterapeuta nova, que faz exercícios pontuais, contou que está até catando feijão. Tô catando feijão e amassando massinha de modelar. Mas não essas massinhas de criança, não. E seu pai outro dia fez uma feijoada aqui e dá-lhe feijão para catar. Hoje mesmo, acabaram de me dar outro saco de feijão para escolher.

Ela tem um humor que me espanta. Que é lindo de ver. Aos 86 anos, mãos livres de rugas, teve de sair da casa dela no interior, onde cuida do jardim e do gato, para ficar aqui, na casa do meu pai, até que recupere os movimentos da mão, depois da queda. Está há meses já sem tocar piano. E ainda assim, mantém o bom humor. É um exemplo. Porque eu sou atacada pelo cansaço, pela TPM, pela saudade da minha mãe, das minhas amigas que moram fora. E ela firme. De uma vitalidade que dá alegria.

Tem pastas e pastas, que hei de herdar, com todos os recortes de jornal em que meu avô saia. Às vezes acho que esse ritual de ficar na casa dela quando pequena, brincar de cabeleireiro e fazer nhoque, e depois ficar esparramada no chão vendo essas pastas, com os recortes de jornal, me fizeram, de certa forma, querer o jornalismo. E talvez, vai saber, essa coisa dela ter sido uma famosa atriz de rádio tenha me criado essa vontade louca de ser locutora.

E, sabe, desde que comecei a escrever no jornal da cidade grande, naquele caderno de circulação nacional, ela passou a guardar minhas reportagens também. Uma a uma. Estão todas organizadas na casa dela. Mas desde que teve de vir para São Paulo, parou. O jornal não é meu aqui, né. Me disse. Mas pedi para que ela continuasse guardando, porque ela era a única pessoa que cuidava dos meus escritos. E eu amo.

Conversamos longamente ao telefone, neste dia em que me proibiram de ir ao trabalho. Olha, deviam fazer uma revistinha pra gente poder colecionar melhor, viu? Disse sobre o caderno novo. A revistinha é mais prática, sabe?, e dá para colecionar melhor, a gente pode colocar em qualquer lugar e fica uma belezinha. Mal sabe ela que tudo que ela faz fica, por natureza, uma belezinha.

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