:: Carta aberta
Querido,
Confesso que me deu certo nervoso estar atrasada para o trabalho. Mais do que eu imaginava, porque tinha o trânsito das quintas-feiras de chuva que eu inventei de desconsiderar. Acho que foi aquela mistura de jazz com carinho e comidinha da alma. Eu chamo de comidinha da alma, você sabe. Aquela que preenche a gente até não faltar mais nada. Foi assim.
O pãozinho de entrada, que você deixou sobre a mesa de centro da sala para nos receber, esquentou desde o início. Estava frio, né? E aquele vento na janela com vista para as árvores de Higienópolis quase cantava. Lembra? Eu fiquei na dúvida do que tinha naquela pasta que a gente lambuzava o pão. No fundo, não sou muito boa pra descobrir ingredientes e isso até me entristece, vez ou outra. Mas ontem não. Ontem, depois que você contou o que era, eu pensei, nunca saberia descrever. O missô artesanal que trouxe lá da Liberdade com exclusividade, a salsinha picadinha até desaparecer, o bom azeite. Uma alegria.
Você sabe. Todo mundo que chegava comentava que o perfume da comida estava invadindo a área do elevador. Era quase como se estivesse nos convidando a entrar. E estava. Essa coisa de cheiro, sabe, pode perturbar os vizinhos, já pensou? Os vizinhos que colocam seus miojos na panela por três minutos e abrem aqueles saquinhos de tempero industrializado.
Ali na sua panela de pressão, que ele disse, cantava e não apitava ou qualquer outra coisa - e eu achei poético -, tinha um arroz integral. E depois vieram os detalhes do prato, enquanto você ficava na ponta dos pés, para alcançar o livro do Kikuchi na estante da sala para me mostrar aquele monte de coisa que ele escreve sobre a cura de tudo quanto é doença pela comida. Gostei daquela parte do furúnculo na face. Furúnculo na face, ele diz. E resolve com nirá, parece.
A receita, foi dele. Lá do Satori da Liberdade, onde você vai vez ou outra - e precisamos ir todos juntos um dia, não? Kikuchi ensinou e você fez maravilhosamente bem para os amigos aquele risoto de arroz integral, que fica por mais de 40 minutos no fogo baixo na panela de pressão, antes de acrescentar os cogumelos, que tanto gosto. Uma delícia. Não sei se vou arriscar por dois motivos: não tenho panela de pressão e até a menor boca do meu fogão faz um fogo mais alto do que o esperado, mesmo quando está no mínimo (ele disse que vai ver aqui a saída do gás, ele tem disso, sabe consertar as coisas e eu adoro).
Junto, aquela carne que desmanchou na boca, com cenoura e pimenta-biquinho. Já pensou na cor daquele prato? O marrom, o vermelho que chegava a brilhar, o laranja. Uma coisa. Na cozinha, improvisamos o lixo. Ele disse que sempre foi assim, improvisado. Tomei mais um copo d'água e voltei para o sofá e as conversinhas e o jazz. Um privilégio.
E você reaparece, quando o relógio já começa a me fazer me sentir mal (está certo isso? "me fazer me sentir mal"?), carregando aquela travessa com maçãs perfumadas e o regime, o relógio. Ai. E a descrição quase cruel: o bolo de tapioca (de saquinho e você até fez graça), a maçã da tarte tatin. E o relógio e o regime e todo mundo no segundo prato. Mas eu me levantei. E, pouco depois, o trânsito e o relógio e o trabalho e o trânsito.
Ainda assim, coloquei um disco de jazz com os antigos, com Bessie, com Django, com Louis e tentei esquecer. Porque, ali, naquele momento, eu só tinha que agradecer você por aquele almoço. E pelo carinho. Obrigada.
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Um comentário:
adorei, Loulou... foi um prazer te receber... receber todos vcs. pudera nao ter o tempo ali, e a gente ia ficar no bate-papo até tarde da noite. meu dia foi uma delicia., e devo isso a vcs.. bjos, com carinho :)
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