segunda-feira, outubro 12

:: O sítio e as histórias dos pensamentos

Ele cantarolou “O Abacaxi de Irara” pelo caminho - e foi quase melhor que Tom Zé, verdade. O céu estava azul claro, bem clarinho, sem nuvem alguma, naquela manhã de primavera no sítio. Papai nos levou para passear pelo novo pomar. Chamamos de “novo pomar” a área de árvores frutíferas mais próxima do casarão. Pro lado de lá, estão as árvores mais antigas, as laranjas, as mexiricas, os limões, as mangas. São vários tipos (espécies? variedades?) de cada um deles. Pro lado de cá, estão as árvores que ela plantou pessoalmente. O cambuci, que trouxe da casa da praia, as lichias, os tamarindos, as graviolas, as groselhas. Eu gosto especialmente das árvores de maçã. Acho que é pela delicadeza. São pequeninas, quase frágeis, e têm frutinhos entre o amarelo e o vermelho, que raramente conseguimos comer maduros. Os passarinhos aparecem antes. Quase sempre.

Antes das frutas, papai me levou para o meio do pasto. Me certifiquei de que as vacas e os bois estavam distantes. De um tempo pra cá, dei pra ter certo receio e vacas e bois. Aqui no sítio, tinha uma vaca branca, gorda, que dava filhos e leite sem parar, e corria atrás das pessoas que inventassem de atravessar o pasto. Um dia, me escolheu e, desde então, prefiro ficar longe. Os cavalos não. Os cavalos ainda estão entre meus animais prediletos e andar por aí num desses é coisa terapêutica sem igual.

Enfim, fomos até uma das laterais do pasto. Só eu e papai. Lá, ele me mostrou o Jequitibá, com tronco já forte e folhinhas em vários tons de verde. Foi o vovô que me deu essa muda, lembra? Quando ele diz vovô, está falando do pai da minha mãe. O pai dele a gente nunca chamou de vovô porque morreu quando meu pai tinha 13 anos e eu nem conheci. Não deu tempo de virar vô. Mas, papai sabe, escolhi o jornalismo muito por conta dele. O pai do papai faz parte da história do rádio e da televisão. Começou nos primórdios da TV Tupi, lááá atrás. E eu soube de tudo, desde pequena. Minha vozinha, que devo visitar daqui três ou quatro horas numa cidadezinha vizinha, onde ela escolheu morar depois de São Paulo, tem uma pasta enorme e plastificada, com todos os recortes de jornal de artigos e matérias e afins que falavam do meu vô. Sempre acompanhei tudo. Ela alternava entre os três filhos, o piano clássico e as novelas do rádio - e eu adoro as histórias. O meu avô pai do meu pai morreu no auge do casamento com a minha vozinha. Eu digo, até hoje, que foi a história mais linda de amor sobre a qual já ouvi falar. E, sabe, às vezes sinto mesmo que tem a ver com a morte precoce. É tão, tão triste que chega a ter uma beleza difícil de explicar.

Mas, enfim, estávamos falando do vovô, pai da minha mãe. Papai mostrou os troncos da árvore e me contou a história. Lembra quando o vovô foi lá em casa e levou aquelas camisetas, que ele mesmo mandou fazer, com a foto de um enorme Jequitibá, dizendo “Salvem os Jequitibás”? Ele levou junto algumas sementes, num saquinho, e eu plantei aqui. Isso deve fazer uns dez anos, contou. Disfarcei, mas tive vontade de chorar, no fundo. Meu vô me faz uma falta estranha ainda hoje. Desde que morreu, daquela forma que a família escolheu pra ele, em sua casa, repousando na cama, com calma, família reunida, eu sinto falta dele. Sinto falta das nossas conversas sobre viagens e literatura. Das conversas sobre música e artes plásticas. Ele viveu a tempo de saber, pelo menos, que quem me ensinou essa paixão pelos livros, pelos discos e pelas artes foi ele.

No subsolo de sua casa, tinha uma porta de vidro enorme, que corria de um lado pro outro, com vista pra um lindo jardim, que ele cuidava pessoalmente. A gente tinha costume de ficar por ali, quando eu ia visitá-lo. Ali que ficavam seus livros e arte, a obra completa de Fernando Pessoa, que eu espalhava no tapete e lia, desde pequena, e achava lindo. Ali estavam os vinis, os cds, as fitas K-7. Ele catalogava um por um. Sempre que comprava um disco, ou gravava uma fita (e ele gravava várias, regularmente), ele escrevia num selinho branco pequeno quantos minutos tinha cada faixa e colova na caixinha. Depois, naquelas cartelas da catálogo, registrava todos os dados e guardava numa espécie de arquivo. Depois morreu.

Durante os meses de sua doença, quando já não falava mais, íamos muito visitá-lo e jantávamos em família, numa mesa enorme, com todos os lugares ocupados, como se ele e a vovó, que já tinha nos deixado uns anos antes, estivessem ali. Ouvíamos música e contávamos sobre o dia, sobre o trabalho. Vovô me estimulou desde o início com o jornalismo. Eu escrevia uma notinha de sete ou dez linhas, ele impria e guardava - e mostrava para os tios e primos quando apareciam por lá. Um dia, me deu um mapa mundial enorme e disse pra eu pendurar no quarto. Filha (me chamava assim, de “filha”), você é jornalista e precisa saber o mapa inteiro. E foi assim que comecei a aprender direito essa coisa da localização dos países e das pequenas cidades.

Mas então, quando vovô já estava muito doente, eu descia no escritório dele, e ficava abrindo e fechando as gavetas de discos e fitas e folheava todos os livros que podia. Vez ou outra, caía uma lágrima e eu tentava disfarçar. Nem sempre conseguia - porque, quando caíam três lágrimas, eu não controlava mais. E então costumava subir e sentar no colo da mamãe. Até chorava alto e ficava sem ar, de tanto que doía ver vovô doente. Hoje, no passeio pelo pasto para ver de perto o Jequitibá do vovô, senti um aperto que não sei bem explicar, mas é como se ele estivesse por perto. E ele deve mesmo estar.

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