sexta-feira, julho 16

:: Pequenas histórias

Escolhi um disco de música clássica bem elegante para escrever sobre aquela mulher ali ao lado, uma ou duas cadeiras adiante, à minha esquerda. Ela traz algum romantismo para esse voo esquisito, que atrasou horas, mudou de portão, mudou até o número e, céus, mudou o próprio avião. Uma bagunça.

Ficamos parados no solo uma hora ou mais, depois de ter os nervos atiçados ali na sala de embarque poucos minutos antes. Tivemos até de abrir os chocolates que levávamos de presente do free shop quando a fome bateu. Pior: o o sol deixou o ambiente abafado e o ar-condicionado permanecia desligado. Cirou-se uma sauna que fez surgir, em poucos minutos, odores desagradáveis no ar.

Mas aquela senhora realmente traz algo de especial para esse momento deselegante. Camisa branca para dentro da calça, alinhadíssima, cabelo curto muito bem arrumado, uma malha de cashmiere rosa claro sobre os ombros. Certamente está usando algum perfume francês _e deve ser o mesmo que usa há anos, anos.

Divido minha atenção basicamente entre duas coisas aqui neste voo tão comprido. Reparo nos seus movimentos e, vez ou outra, paro um pouco para ler. Ela lê bastante também. Usa uns óculos finíssimos para leitura, com aro grosso, de muita personalidade. Mas não perde a delicadeza do rosto, que ainda não foi tomado por rugas. Mas suas mãos não escondem. Já tem certa idade.

Ela dormiu pouco. Tratou de usar parte de seu tempo para escrever. Virou o menu do jantar do lado do avesso e teve, assim, um papel quase inteiro em branco. Está com o dedo indicador da mão direita machucado, protegido por um curativo. E não é canhota. Mas parece que não se importa.

A caneta desliza pelo papel e algo ali me faz lembrar de Virginia Woolf. Por isso que de repente me desliguei do desconforto dessa poltrona e da vontade de chegar em casa. Porque realmente alguma coisa nela me lembra Virginia Woolf. E então posso lembrar de Miss Daloway e das flores e tudo parece caminhar melhor.

O meu vizinho da volta é um senhor gentil, careca, de óculos e também gosta de ler, pelo que percebi. Mas agora está entretido com o xadrez, que joga pela tela individual que temos aqui nessa classe de luxo. Mas, confesso, ele ainda não escovou os dentes e o mal-cheiro atinge o meu lado da cama de tempos em tempos.

Na verdade, não sei o que é menos pior, um senhor gentil e sorridente, mas sem exageros, que cedeu seu azeite de oliva extravirgem para que eu pudesse deixar meus camarões mais apetitosos, mas que delicadamente elimina gases enquanto dorme ou o almofadinha que veio ao meu lado na vinda, cheio de rituais, antipático, mas cheirosinho.

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