sábado, setembro 24

:: O registro das coisas

Tenho um pouco essa sensação de que se recuperasse um tanto da energia, ia escrever, escrever. Com minúcia de detalhes, aquela coisa da textura do pão, que chegou duro à mesa, sabe. Então, eu penso, não me sirvam pão como cortesia. Eu prefiro pagar ou não comer. Mas, mesmo, não quero saber de pão duro, que machuca a boca, seco, desse serviço com desleixo, descompromissado, como se você, cliente, fosse um idiota, ou uma merda. Outro dia saí de lá com certa vontade de escrever uma carta longa, à mão, tentando descrever a sensação que é estar ali e ser tratado daquele jeito displicente. É um restaurante dentro de um hospital. Um hospital metido a hotelaria cinco estrelas. Tudo brilhando, pé-direito alto, obras de arte, plaquinhas homenageando esse e aquele judeu. Enfermeiros com bom português, as máquinas de vida da mais alta tecnologia. Serviçais que entram nos aposentos e arrumam a cama do acompanhante com lençol recém-chegado da lavanderia, de um branco impecável. As equipes mais reconhecidas de médicos. E aquele restaurante ali. Com um salão que até ficou interessante, suspenso, envidraçado, com vista para as outras unidades do hospital mas também para um verde vistoso, que até alegra. Mesas relativamente espaçadas, o que dá certo conforto. E aquela coisa de antigamente, de quando o Viena era um lugar legal, nos primórdios, dos lápis de cor, para rabiscar nas toalhas de papel. Essa parte gosto ainda hoje porque é lúdico. E, sabe, ali no hospital não se tem muita força para conversar, às vezes. Então a gente se põe a desenhar e é melhor. Acalma. Mesmo que você seja uma pessoa como eu, que não sabe desenhar um homem-palito sequer. Tem a coisa das cores e vocie pode ficar escrevendo nomes. Não sei. Mas você pisa ali e é uma desgraça. Porque, acompanha, estar ali é o respiro. É o respiro daquelas pessoas que estão sofrendo profundamente ali naquele hospital. Daquelas pessoas que acompanham os doentes. Que presenciam a dor de alguém que ama. Aquele restaurante ali (gente, alguém percebe isso e resolve esse problema) deveria nos acolher. Acolher mesmo. Você deveria ser recebido com rapidez. Quem está ali está com fome. Está até meio enjoado. Está há tempos sem comer. E, pior, está triste. Quem está ali, está triste. É preciso saber lidar com esse público. Esse público cansado, exaurido, triste. Não é qualquer restaurante, alguém avisa? E então demora-se um tempo escorregadio esperando que algum garçom faça o favor de te olhar. E mais um tempo até que ele faça o favor de caminhar até a sua mesa. E esse inferno de pão cortesia. Sério: não me sirvam pão cortesia. Eu quero um couvert agora, ao sentar na mesa, com pão quentinho, rápido. Eu estou triste e com fome. Não me façam esperar. Pior: não me façam esperar por um pão cortesia frio e duro e seco que demora uma eternidade capaz de tirar o último fio de bom humor que poderia haver ali bem no fundo da minha alma. Traga as nossas bebidas rápido. E, sabe, anote meus pedidos com atenção. Não traga a omelete com fritas se pedimos com salada. Não traga o misto com pão pita se pedimos com pão francês. Porque a comida ali já é ruim. Meia-boca. Então, sabe, se eu quero um pão francês e eu estou triste... Me traga um pão francês. Ali, sabe, tudo fica mais delicado. Tudo fica mais urgente. Me recepcione bem, por favor. Não estou pedindo muito, acho. É algo que esperaria em qualquer restaurante. Eu saio de casa para comer bem e ser bem atendido. Se não, não faria sentido. Mas ali, sabe, tem de ser mais impecável. E tem isso, bastam os preços alarmantes, a comida de quinta categoria, o café Pilão mal-tirado. Estou descontando tudo isso. De verdade. Estou descontando. Mas me atenda bem, com carinho e precisão. Eu estou triste, com fome, meio enjoada, carente. Não me traga pão amanhecido, duro, seco, que demora horas para chegar à mesa. Não troque a minha salada por fritas, nem o meu pão francês por pão pita. Não desvie o olhar quando te olho, garçom, ali de longe. Eu quero mais uma coca zero com gelo. E sem limão. Anota isso no seu caderninho: eu não gosto de limão na coca com gelo. Me traga a conta já com a máquina do cartão e faz isso tudo passar logo, sabe. Porque amanhã terei de comer aqui de novo. E o sofrimento só cresce. O cansaço. A fome misturada com o enjoo. Por favor, me atendam melhor. A vida já está difícil o bastante para eu ter de lidar com a sua incompetência.

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