domingo, maio 3

:: Manhã de saudades

Está tudo bem. Hoje o dia amanheceu ensolarado e não custei a levantar. Armários absolutamente arrumados. Toalhas brancas com cheiro de lavanda estendidas. O vaso de flores no centro da mesa. E então veio a manhã de saudades. Ao sol, Caetano canta ao vivo aquele disco antigo e as palmas e as letras que eu decorei quando era pequena e a saudade de cozinhar com meu pai, enquanto ele pedia cuidado redobrado com as facas e eu cortava cebolas. Eu sempre cortava cebolas. Eu cortava cebolas e ele ao lado entretido com alguma missão mais complexa e a vista para o gramado do terreno da praia e Caetano ao fundo e a gente cantando junto. Desde pequena eu canto junto.

Está tudo bem. Outra dia encontrei as amigas que tanto gosto e ela preparou um jantar completo, com verdinhos da horta que ela cuida religiosamente, com conserva de limão-siciliano, com ovo perfeito servido em panelinhas Le Creuset coloridas pequenininhas, polvilhado com uma farinha de pão para tempura, que vai à frigideira e depois se mistura com alho bem picadinho (beeeem picadinho, ela repete), salsinha, sal. Tudo sobre um purê de cara que ela demorou horas para fazer e um toque final de flor-de-sal e azeite trufado. Mas, depois de tudo, de um, dois dias, veio a manhã de saudades. Saudades de ler Mafalda na cama enquanto ele me interrompia com as melhores passagens de Irmãos Karamazov nos feriados na praia. Saudade das orquídeas, das noites de jazz. Das juras de amor eterno.

Está tudo bem. Hoje pela manhã tinha e-mail dela com elogios aos discos que gravei para levar na bagagem e à minicasa – “que é com certeza a mais fofa que eu conheço”, disse ela, zero surpreendida. E mais trechos celebrando a nossa amizade. E ela não é muito das celebrações exageradas, dos abraços apertados que duram muito, dos olhos nos olhos quando digo como eu vou sentir saudade, eu sei. Aproveita o jeito rebuscado tão peculiar pra falar de mim... “Sempre foi unânime que eres um ouvido e conselheira absurdamente incrível e você não sabe como agradeço aos céus por você estar aqui naquele dia de bodinho do ano”. E meu olho até enche porque aí veio a manhã de saudades e eu lembrei do queijo e vinho que ela preparou especialmente pra mim, em plena Paris. E o capricho daquele ritual que veio pra ficar. Porque a gente teve ataque de riso enchendo o colchão de ar, porque ela comprou lindas taças de Bourdeux e um vinho melhor que a média. Ela queria celebrar aquele momento. E eu brindei. Eu só podia brindar. Ela, que é pentelha com o dinheiro e economiza em tudo, comprou queijos de todas as espécies e colocou a minha Nina Simone para tocar. E eu só podia brindar.

Está tudo bem. Hoje almocei no Filial em boa companhia e depois fui na casa dela, recém-chegada da Europa, para abraçar apertado. Ganhei gatinho miniatura de Amsterdã, que é o predileto, peguei a obra das girafas, que é a predileta, tomei coca light e matei a saudade. Mas antes, teve mesmo a manhã de saudades. Saudade de quando eu ainda era adolescente e ele dizia que ia beijar uma sardinha de cada vez – e, que quando acabasse, ia começar tudo de novo. E era assim mesmo que fazia. Saudade das horas na rede e das conversas sobre as profundezas dos sentimentos. E as lembranças de quando as meninas planejavam os fins de semana de escalada e padaria. E as lembranças de quando eu andava a cavalo por horas e subia nos pés de amora no sítio do vovô. Saudade do ovo mexido com macarrão que mamãe fazia quando eu ficava manhosa e das histórias das lágrimas que a gente inventava antes de dormir.

Está tudo bem. Ele me liga para dar boa noite e diz “eu só queria dar boa noite”. E eu adoro, ele sabe. Ele me busca quando vamos sair e vai ao parque comigo quando dá vontade. Me leva para tomar caipirinha de lichia do Astor quando fico com desejo e entende bem minhas angústias e dúvidas. Mais: ele entende minhas alegrias. Me ouve por horas. Fala por horas. Gosta dos discos que eu gravo e diz que, apesar de não ligar muito pra tatuagem, gostou do Calder que tenho no ombro. Mas entre uma coisa e outra veio a manhã de saudades. E eu simplesmente não gosto de sentir saudades.

2 comentários:

de vries disse...

"... the night is bitter... the stars have lost their glitter, the winds grow colder, suddenly you're older... and all because of the man... that got away... no more his eager call, the writings on the wall, the dreams you dreamt have all gone astray..."

E eu passo pra dar oi, sempre que dá, e cantar uma musiquinha... é a numero 1 do disco chique. pode ouvir de novo, é tão bonita... orquestrão!

lufec disse...

vou ouvir pra cantar junto!