sábado, dezembro 27

:: Rascunhos

Ela gosta daquele biquinho que a Nina Simone faz no palco de maiô, super à vontade. Coloca o DVD e volta, play e volta, play e volta e repete. Não acredita como pode ser tão incrível e diz para eu comprar DVDs assim quando for viajar. Dança funk e rap no meio da pista e dá pequenas requebradas em lugares públicos quando ouve alguma coisa que mexe. Faz aquele biquinho. Nem percebe. Mas é mania e fica sexy, confesso. Ela vai com o peito pra frente e a bunda pra trás. Valoriza o quadril para esconder os mínimos peitos. Conta que já pegou no silicone da amiga no banheiro e que sim, teve vontade de imitar. Mas não. Quando era pequena achava ruim o cabelo meio enrolado e deixava até a cintura para fazer charme. E abalava os corações. Lia desde a infância. Lia. Lia muito. E rápido. E eu, que nunca conseguia acabar os livros da escola no prazo, às vezes convidava ela pra ir para o sítio comigo e ela lia para mim, os meus livros, em voz alta, durante as longas horas de viagem. Nas piscina, pouco depois, papai levava pra gente cachos de uva e a gente fazia pose para tirar foto. E a gente guarda até hoje. E vê o potencial da vaidade desde cedo. Apesar do chulé. Até ontem, ela tinha um pé minúsculo que exalava um cheiro quase insuportável. Ela se recusava a brincar de boneca e, por ela, ficava o dia entretida nas mais diversas brincadeiras de menino. A vizinha lá da vila dizia, ai, que sobrancelhas bonitas você tem, grossas, né, e ela odiava. Ela gostava do elogio, desde sempre, mas não gostava da tal da sobrancelha grossa. Quando a gente era bem pequena e tinha almoço na casa dela, ficávamos horas brincando naquela escada aberta e perigosa, enquanto os adultos, em coro, diziam, tomem cuidado na escada. Isso não é lugar para criança. E então, a gente ficava no quarto dela, micro, e brincando ali, naquele pedaço de mundo, de gato-mia, no escuro. Por anos, o melhor esconderijo foi o mesmo. Dentro do armário de sapatos. Ai, o armário de sapatos. Depois daquilo, era público essa coisa do chulé. Hoje, ela tem pés sedosos e macios, usa cremes especiais e tudo. Ela não queria casar, nem ter filhos jovem. Ela nem era romântica. Sofreu por alguns amores, transou tarde, fez alguns amores sofrer. Depois, recebeu uma carta de amor que carregou por meses na bolsa para reler alguns trechos e casou. Ela casou ouvindo Feeling Good, da nossa Nina. E eu chorei até borrar a maquiagem. Ela não ia se vestir de noiva, na vida. E então, ela estava ali, de noiva, com um vestido autêntico e tudo, sapatinhos cor-de-rosa, cabeleira luxo. Ela também usa cremes especiais para o cabelo. Ela, que devia mesmo pular banho quando era pequena, usa muitos cremes especiais e faz propaganda. Ela, que fez uma tatuagem tribal nas costas quando jovenzinha, fingindo que era rebelde (mas não), usa até maquiagem hoje em dia. Mais. Ela bate pernas em Paris, loucamente. Não compra nada, além do supermercado, e fica em pânico quando passa numa vitrine de maquiagens. Ela tem pernas pequenas e não consegue andar rápido na rua por isso. Acha a risada da Erikah Badu em Plenty a melhor. A melhor depois da minha, acho. Ela gosta quando eu tenho ataque de riso e sempre, sempre me faz rir. Virou barista mas não esconde que toma Nescafé e com um pouquinho de chocolate do padre, assim. Mas nunca muito quente. Nos almoços da firma era sempre um problema. A gente demorava mais na hora do café só porque ela tem muita sensibilidade e não conseguia beber nada muito quente. Nem mais ou menos quente. Ela me ensinou “Picture on the Wall”, do JBs. Eu ensinei Blosson Dearie pra ela. Poucos sabem que ela, toda diva e deslumbrante, tinha um pêlo alien no braço que dava até para fazer trança. Mas não se acanhava. Hoje, imagina, nem pensa mais nos peitos pequenos. Ela usa botas até o joelho no inverno com saia. E eu digo, quero ser assim quando eu crescer. E ela, quando cresceu, até brincou de ser DJ comigo. E tocamos juntas numa festa em que quase ninguém dançou. A gente anotou algumas coisas daquela noite. Quando pediram para peloamordedeus tocar funk enquanto, sim, estava tocando Curtis. Era mais ou menos assim. E depois, as horas no sofá da casa nova dela. De adulto. Os segredos e mais conselhos que sempre, sempre foram positivos. Porque ela é assim. Ela é assim com a vida e a vida fica assim com ela. Por isso que dá sempre mais e mais vontade de estar perto. E então, quando ela está longe, a gente tenta apagar. E escreve até esquecer.

4 comentários:

marcella franco disse...

eu até arrepiei no final desse post!

MEL disse...

e eu queria tê-la conhecido mais cedo... mas não faz mal, ela é linda linda, linda, exatamente como você escreveu! do chulé eu nem sabia e dos pelos aliens no braço, nem poderia imaginar.
eu também quero ser que nem ela quando eu crescer...

Mari disse...

ai, chorei. demorô mas abalô, hein filha?
mas esse chulé nego até a morte. vc deve ter me confundido - sério.

rita morais disse...

chorei tbm... o coraçãozinho de grávida fica mais mole, mais sensível, e ai junta com a saudade dela... difícil de segurar as lágrimas.