sexta-feira, fevereiro 20

:: Sobre os momentos

Ele disse que melhor se tiver mesmo um pouco de ficção e eu fiquei mesmo aliviada. Ali é assim, tem chave para entrar no térreo e um hall que parece a sala da nossa casa - uma casa moderna e iluminada. Em outro país.

Lá dentro, tem obras de arte espalhadas, piso de taco e algumas janelas amplas. Essa parede, e aponta para a parede preta que eu achei chiquérima, é para rabiscar com giz e depois lavar com coca-cola. Na frente, uma prateleira cheia de livros - e ele leu todos. Foi assim desde sempre. Ele ia mal na escola, e usava jeans e havaianas-do-modelo-antigo, mas lia, ouvia jazz e preparava salmão no forno. Eu já contei.





E quando chegamos, e eu fixada naquela árvore da felicidade, que minha mãe me ensinou a gostar desde sempre, ele pegou o vinil da Julie London e colocou pra gente ouvir, só porque é a capa de disco que ele mais gosta. E eu, na verdade, gosto mais do verso, que tem o nome das músicas e uma frase explicando cada uma. E então tem "I Love You" assim:

"I Love You" - é uma velha frase, mas da maneira como Julie a diz é nova e cheia de insinuações.

Coisinhas assim. Ele anda um pouco pela sala, enquanto a gente lembra das situações mais imbecis dos tempos. Troca o vinil algumas vezes. Depois que eu conto uma história de amor sem futuro e ele enche o meu copo: fala que eu tentei te seduzir com Oscar Peterson, sugere. E ele tentou mesmo.

Depois que eu me acomodei no sofá, já em casa, coloquei os discos que ele me deu. Primeiro, o trash. Depois, o chic. Por isso, lembranças surgem assim.

Ali no canto tinha uma poltrona laranja, quase vermelha, onde ele senta e fuma. Bem ao lado da árvore, que, talvez, não seja a árvore da felicidade que minha mãe me ensinou a gostar desde pequena. Na verdade, não entendo muito de árvores. Nada muito além de orquídeas e pés de café. Do lado oposto da parede preta, tijolos aparentes. Eu sempre soube; é muita personalidade.

Depois ele chega perto com o vinil do Chet Baker que eu mais amo, "Let's Get Lost". Agora você que vai ficar com invejinha, eu disse. Porque ele é amigo dos artistas, dos músicos de Berlim e de outros lugares por aí, mas eu tinha visto o documentário do Chet num cineminha mequetrefe lado B em Nova York, super alternativo. E ele ama Nova York e o lado B da vida. Mas não. Agora posso falar? Continuou. Eu conheço esse cara aqui, e apontou pro nome na capa do disco. É. Ele conhece Bruce Weber.

Ele tentou me impressionar com o bourbon com gelo (quer água com gás?, perguntou, ali perto da geladeira). Me deu uma obra de arte dele - não é exclusiva, mas é para a sua casa nova, explicou. Mais dois discos, com a playlist escrita com a letra de sempre, que eu gosto desde criança. Ele sabe. Mas ele que fica impressionado quando eu dou risada das coisas que ele diz e conta histórias idiotas. Porque ele sabe que eu leio muito. Ouço música. Vou ao cinema. E como nos restaurantes que ele mais gosta. E em outros também. Ele gosta especialmente de me contar que foi no Per Se e perceber que eu sei exatamente o que ele está dizendo. Quase exatamente.

No meio das bobagens, eu anotava um pouco no moleskine. Meio nerd, mas não controlei. Porque ele me ensinou como fazer um elefante, elegante e eu tinha certeza que ia esquecer. Ai, o bourbon. É só mudar o "f" por "g". E ninguém vai entender o quão idiota é, mas ele desenhou o tal do elefante e eu ganhei um cartão para colocar no lavabo da minicasa. Ele sabe que eu sempre vou rir.

Antes de ir, eu fui escrever na parede com giz, na parte que fica mais perto do fogão. Eu lembro quando era criança, que descobri que não poderia ser professora quando escrevi na lousa e ficou tudo torto - porque eu viro a página para escrever - e fica impecável, sempre em papel sem pauta. Mas, na lousa? Tudo, menos professora, eu pensava.

Ali eu rabisquei o menu que vamos preparar num sábado qualquer. Faz anos que a gente não cozinha juntos. A entrada é meio cafona, mas eu gosto: canapé de brie com damasco. Mas eu resolvo em uma pequena adaptação, ele disse. No lugar do brie, cablanca; no lugar do damasco, cereja seca. Ele é mesmo muito chique. Na verdade, ele é chic. Por isso que eu gosto. E ele diz, depois de tudo, que luxo é me ter por perto.

Um comentário:

de vries disse...

I'll make them Juleps next time. Juleps sempre anunciam o verão. E eu acho que verões são bonitos - pois ficam escondidos nas profundezas do inverno.
Vc traz a menta?
Dream a while, scheme a while...

M.