:: Um ruidinho manso
Sobe. Sobe que eu pago o seu estacionamento, ele disse. Já fazia uma ou duas semanas inteirinhas que fazia mistério com um presente que ia chegar pelo correio _e íamos aproveitar juntos, dizia. Você tem direito a três chutes. Três chutes? Mas eu gosto de jogo de adivinha. Tá. Direito a três perguntas, então.
- Que cor é?
- Vermelho e preto
- É assim ou maior? - mostrando um tanto com as mãos, do tamanho de um livro padrão.
- Maior.
- E o que você tem que me dar junto? - porque tinha dito, dias antes, é um presente que precisa de outros presentes.
- Isso não posso responder.
E então fiquei calada. Ele esperou. Mais um minuto. E levantou. Vou tirar a música para você se concentrar mais. E caminhou até a vitrola, ali na frente do sofá onde estávamos sentados. Mexeu no toca-discos. Fez que desligou. E desligou mesmo. Mas a música continuou. E vinha mais daquele cantinho dali da esquerda, perto da rede da varanda. E a caixa de som lá do outro lado.
Fui espiar. Um disco girando sobre uma vitrolinha vermelha, pequetucha, bonitica de mais. Tanto, tanto, que nem sei dizer. Nem deu pra respirar direito diante daquilo. Ele me presenteando com as músicas e seus ruidinhos _ruidinhos de que tanto gostamos. Ele me presenteando com um objeto que vai nos deixar ainda mais próximos nas caminhadas entre sebos e feiras de antiguidade pelas ruas e praças, para ficar horas ali fuçando aquele caixote de discos, na ala de música brasileira, ou aqueles outros ali, com os meus prediletos do jazz. Ui.
E não tinha acabado. Você pode escolher qualquer um dos meus vinis pra você, de presente. Qualquer um? Qualquer um. Depois de escolher, vou te dar mais cinco, dos meus. E então, ansiosa diante daqueles discos todos, fui vendo um por um. Um por um. Agradecendo aos céus que ele ainda não tinha organizado os artistas em ordem alfabética, enquanto eu desorganizava ainda mais todos eles.
Fiz uma pilhinha do lado direito com os prediletos. Um deles, antes de acabar a difícil missão de escolher um, unzinho, ele pegou e esticou os braços até as minhas pernas, cruzadas ali no chão da sala, como uma indiazinha. Caetano Veloso, o disco branco, com "Irene" e afins. Esse já era seu porque sempre lembro de você quando ouço.
E aí, a pilhinha pronta, com Nina, Baden, Tim Maia, Louis, Caetano, Chico. Ui. E eu precisava escolher um. Reduzi a pilha: Time Out, do Brubeck, e Temporada de Verão, dos meus queridos brasileiros. Ele puxou Temporada de Verão: se você não escolher esse, apontando para Dave Brubeck, não vai levar nenhum. E eu escolhi. Já tava feito. Peguei, beijei, quase abracei. O disco. Depois ele. E de novo. E de novo.
Depois veio o ritual dele escolher mais cinco para me dar. Mais cinco discos da coleção dele. Quando vou esquecer de uma coisa dessa? Quando? Fez charme, separou um, outro, mais outro. Juntou tudo de novo. Separou o quarto, o quinto. Juntou. Fez uma pilhinha com todos, mais de cinco. Juntou. Segurou firme. Olhou bem no fundo dos meus olhos. Esticou os braços. E me deu todos eles.
Bessie Smith, Nina Simone, Tim Maia de antigamente, Chico e seus caros amigos, Elis sorrindo com a mão na boca, naquele disco que canta "Bicho do Mato" que tanto adoro, Baden abraçado com Grappelli no outro (como assim ele me deu até esse?), a Gal Profana, Temporada de Verão... Tudo para um começo perfeito (e impossível) de uma coleção que deve ocupar aquele e aquele canto da minha sala.
E esse ruidinho que se espalha por aqui e me deixa num aconchego como se ele estivesse aqui, nos cantos todos. Como se eu estivesse nos braços dele. Quase adormecendo.
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