quinta-feira, junho 4

:: Comidinhas da alma

Quando eu era pequena, ela dizia que ia fazer pra mim uma "comidinha pra alma", sempre que eu chorava ou ficava com muito frio. E fazia mesmo. Depois de um tempo, fui entender. E então ontem, que fazia tempo que a gente não saía, fomos jantar no Obá, no Festival das Anfitriãs.

Não é a primeira vez que eu escrevo aqui sobre o Obá e não será a última. É um dos restaurantes que eu mais gosto em São Paulo, não só pelo ambiente, que é lindo e alegre, não só pela comida, que é saborosa e delicadamente servida em louças cheias de personalidade, cada uma de um jeito. Arrisco dizer que o que eu mais gosto ali é o calor das pessoas. A turma de proprietários sempre me surpreende com o carinho e com a dedicação integral ao restaurante. Eles passam isso de forma tão verdadeira à equipe, que parece que todo mundo ali ficou enfeitiçado por esse clima encantado. Por isso recebem os clientes tão bem. E, de repente, a gente quer voltar e levar as pessoas que a gente mais gosta junto.

Tudo isso fez ainda mais sentido quando eu soube os detalhes do projeto Anfitriãs do Brasil. O Hugo e o Carlitos resolveram desvendar as cozinheiras do Brasil. Não estou falando de chefs de cozinha, que tem toda aquela pose, né. É mais ou menos assim: eles decidem um destino no país, fazem as malas, recolhem informações sobre a cozinha local e saem em busca de cozinheiras. Cozinheiras porque são personagens anônimas, muitas vezes, mas que fazem essa comida que eu chamo - depois que aprendi - de "comidinha da alma". Elas encostam a barriga no fogão desde pequenas, quando a avó e a mãe cozinhavam, e depois inventam de reproduzir a comida caseira, cheia de histórias.

Algumas nunca pegaram avião, outras nunca foram ao teatro. Mas elas têm em comum o gosto pela cozinha e a sabedoria no uso dos ingredientes locais, que a gente nem imagina que existem.

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Na última edição, quem veio pra cá foi a piauisense Ilma, que nasceu na Parnaíba e encheu os olhos quando fui perguntar os detalhes da sobremesa que ela aprontou. Ela lembrou da mãe, que morreu faz menos de um mês. Eu fiquei meio sem saber o que falar e tocada de vê-la tão emocionada. Ela tentava me explicar que o projeto tem a ver com "as comidas da história da cozinheira" e não com o que há de mais importante no Estado. E então, ela lembrou das vezes que ficava na cozinha ao lado da mãe e chorou. "Mas a sua mãe ia ficar orgulhosa de ver você fazendo tanta gente feliz com a sua comida. Porque essa comidinha, é uma comida pra alma". Foi assim que eu falei e em seguida bebi um gole de caipirinha de pinga, de limão e caju, e ela se afastou. Ufa, porque eu fiquei nervosa, confesso.

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Anfitriãs porque a ideia ali não é ficar dentro da cozinha, trancada. A ideia é circular pelo salão e receber os clientes. Foi assim que o Hugo me contou num bate-papo outro dia. E foi assim mesmo ontem.

Comemos pequenas porções de "petiscos para abrir o apetite e a conversa", como uma tortinha de feijão com pequi e o caruru (com quiabo e camarão-seco) numa cestinha de beiju de tapioca, o miniescondidinho de macaxeira e carne de sol, e o arrumadinho piauiense, com charque, linguiça, feijão-verde e temperinhos.





Depois, as "receitas para segurar a cachaça e aguentar a festa", como diz o cardápio. Chegou à mesa pescada-amarela com leite de coco, arroz e pirão; picadinho "da mamãe de Ilma", com maxixe, quiabo, abóbora e macaxeira; carneiro ao leite de coco, que desmanchou na boca, e paçoca de carne que eu nunca (nun-ca) comi igual. Não foi só.




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Na sobremesa, fui surpreendida por limõezinhos doces, uns recheados com bacuri, outros com doce de leite e castanha. Por isso que fui atrás da Ilma... E então ela me contou que usa "um limão pequenininho, caseiro, sabe? Não é aquele grande. O grande não presta". Ela demora oito dias pra preparar o limão. Deixa uma hora por dia no fogo com uma calda de açúcar "bem fininha". No primeiro dia é para raspar a casca, depois, para amolecer. No terceiro, para tirar a casca, no quarto para tirar o miolo. Os outros, para ficar na calda e chegar no ponto certo.

Fica verdinho verdinho, chega a brilhar. E depois é recheado com um creme de bacuri (que eu amo tanto), batido com creme de leite e leite condensado. O outro tem doce de leite e castanha, mas eu pulei, porque tudo tem limite nessa vida.

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Teve também um grupo de música folclórica, que fez uma linda apresentação ao vivo. E o mocinho dizia assim: "Coisinhas da vida que ficam na cabeça da gente". E eu pensei: "E no coração também". Foi assim ontem, no Obá.


*fotos de Paulinho Mercadante

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