terça-feira, junho 9

:: Das experiências

Tem uma coisa que chamo de experiência gastronômica. E são poucos, pouquíssimos os momentos que merecem ser chamados assim. Porque isso envolve um contexto. Vai além (muito além) da comida em si, que é o principal. Envolve o ambiente. A música. O atendimento. O momento daquilo tudo dentro da vida da gente. Envolve conforto. Temperatura. Companhia. Lembranças.

Hoje posso dizer que vivi uma experiência gastronômica, numa São Paulo que não parecia uma São Paulo. Saí do jornal no trânsito, tensa com o trabalho, nervosa com o tanto de coisa que tenho pra fazer na vida até sábado. De trabalho. De vida pessoal.

Mas então o carro estaciona ali na Ribeirão Preto, eu desço e ela já está me esperando. Ele sabe que eu preferia ir com ele. Eu preferia muito. Ele ia ficar encantado com aquilo tudo, mas ainda assim não ia conseguir falar muito baixo.

Ali é assim. Você chega na Brigadeiro Luis Antônio no número que anotou no papel. Olha para a galeria com portas fechadas e luzes quase totalmente apagadas e olha de novo o papel e confirma o número e se sente péssima por ter escrito o número errado. Está tudo fechado ali... Mas não. É ali mesmo. Você toca a campainha da galeria e entra. E então caminha um pouco pra esquerda, pergunta onde é a loja 23 e chega numa pequena portinha. Um passo a frente e você entra no Tempura Ten. E ali nem é mais a nossa São Paulo.

Num clima oriental, somos recebidas por Tiyoko. Uma nissei com gesto corporal delicado, com fala mansa e lenta, com a mesma delicadeza que seu marido, Masaomi Imai, prepara o que ele sabe fazer de melhor: os tempuras. Eles tinham ali uma loja de presentes, "a gente vendia cristais, presentes, né", ela me contou... E então ele se aposentou e, para não ficar parado, resolveram montar um restaurante.

Minúsculo, ao som de jazz, com apenas quatro ou seis lugares no balcão e duas mesas. Duas bandejas pequenas dispostas no balcão para nos receber. E sobre cada uma, o molho para mergulhar os tempuras, que mistura caldo de peixe, shoyu, saquê doce e açúcar; um pratinho com um papel em cima, "é para sugar a gordura do tempura, né", ela explica. Sem ansiedade nenhuma, o que até ajudou a equilibrar a minha, porque tudo aquilo me despertava total atenção e curiosidade, ela dizia detalhes do que estava servindo, etapa por etapa. E isso? Isso é nabo com gengibre, que você mistura no tentsuyu, né.

E então, quando o primeiro camarão-rosa empanado foi servido, a recomendação era: "coma esse só com sal e limão, né. Depois, né, vamos servir outro camarão e você pode mergulhar no molho, né". Ela sabia exatamente o que estava dizendo. Ela entende dos sabores e das sensações que eles causam. Ela sabe o que é que chamo de experiência gastronômica.

Fiquei mesmo impressionada com o silêncio daquele salão micro. A cozinha colada ali, sabe, seu Masaomi empenhado no preparo daqueles empanados todos, logo atrás do balcão, bem na nossa frente. E nenhum barulho. Nenhum. Só tinha tido esse prazer, de um atendimento tão silencioso, que evita qualquer barulho de louças, de conversinhas descontraídas da equipe, de música, uma vez, no Le Bernardin, quando a sis me convidou no meu último almoço na cidade da minha vida, um dia antes de deixar Nova York, aos prantos. E o sonho acabou.

No Tempura Ten o jazz tocou sem parar, bem baixinho. Enquanto isso, seu Masomi e dona Tiyoko serviam um tempura de cada vez, num intervalo ideal, que me surpreendeu. Muita coisa me surpreendeu ali. O tempura fica tão, tão leve que nem parece fritura. A massa fininha, quase transparente, sequinha, crocante. Mas como? Como dona Tiyoko? "É com farinha importada, né. E meu marido gosta de fazer, né." E eu achava aquilo tudo lindo. Eu fico mesmo comovida com a simplicidade dos seres. De verdade.

Outro dia, no Mocotó, um garçom também mexeu assim comigo. Ele falava errado e pausadamente para explicar os pratos, mas me marcou (mesmo) quando veio explicar qual cachaça eu devia pedir e por quê. Falando num português capenga e cheio, cheio de paixão por tudo aquilo que ele faz. E faz tão bem.

Enfim, depois do camarão-rosa, aspargos, pepino-japonês, com um amargor acentuado ("pra quem gosta de jiló, né, ela diz). Depois um peixe fininho, do Pacífico ("especial pra fazer tempura, né"). Depois um espetáculo: um creme de palmito, com toque de alho, enrolado por uma folha de shissô. Junto o saquê seco, ("sem conservantes, né, que o pessoal prefere, né").

O jantar foi pra não esquecer. Mas, no fundo, ele sabe, eu queria mesmo estar ali com ele. Depois do saquê, era como se eu pudesse até inventar sua companhia.

Um comentário:

ian.press comunicação disse...

quero muito ir. vc consegue detalhar tão bem cada sensacão que posso até sentir o gosto e o cheiro das comidinhas...